Memórias do Subsolo
Autor: Fiódor Dostoiévski;
Ano de publicação: 2000
Gênero: Drama; filosofia
Creio, caro leitor, que, infelizmente, nunca haverá um idioma que expresse com perfeição a complexidade desta obra singular. Sendo franco, não poderíamos esperar algo diferente. Enquanto escrevia, Dostoiévski presenciava os momentos finais de sua esposa, enferma de tuberculose. Lamentavelmente, essa não foi a primeira vez que teve proximidade com a morte. Quando criança, tinha contato frequente com pessoas doentes ao acompanhar o trabalho de seu pai no hospital. Além disso, ainda na infância, perdeu seus pais: sua mãe faleceu quando ele era jovem, e seu pai foi assassinado pouco tempo depois. Anos mais tarde, Dostoiévski foi poupado de uma sentença de morte minutos antes do pelotão atirar; sua execução foi revogada às custas de seu trabalho forçado.
Portanto, não há surpresa do protagonista da obra, cujo nome nem sequer é revelado, carregar tamanha carga emocional e psíquica. Aliás, seu nome não é mencionado porque os textos escritos no livro são suas memórias, redigidas para si próprio. E, nas primeiras palavras da sua autobiografia, lemos: “Sou um homem doente…Um homem mau. Um homem desagradável”. Ao longo da leitura, entendemos que não é adversidades como sua pobreza, doença no fígado, cólera ou delírios que definem sua personalidade, mas a busca pela liberdade o fez assim.
Em síntese de seus argumentos: não há o porquê um cidadão, em sã consciência, realizar uma ação que lhe prejudique. Desde que guiado pela razão e pela ciência, todos hão de saber qual atitude tomar para alcançar alguma vantagem. O custo dessa vantagem é ser guiado pelo caminho definido pela ciência e razão. A própria liberdade de escolha é perdida. A única forma de recuperar essa liberdade, pela qual alguns estariam dispostos a morrer, é indo contra as leis da razão: buscando o ruim, a auto depravação, o desagradável, a maldade.
Segundo o Eu lírico, os infelizes que são dotados de uma consciência hipertrofiada, capazes de perceber a liberdade sendo gradualmente perdida, estão fadados a sucumbir ante a lei da natureza: a inércia. Ao conhecer os reais motivos de suas vontades, o homem é tomado por dúvidas, incógnitas, que, no decorrer de uma ação, o impedem de agir. Assim, diante dessa inércia, resta ao homem apenas a angústia. O Eu lírico alude:
“O infeliz camundongo já conseguiu acumular, em torno de si, além da torpeza inicial, uma infinidade de outras torpezas, em forma de interrogações e dúvidas […] se acumulando ao redor dele certo líquido repugnante e fatídico, certa lama fétida […]. Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso camundongo, ofendido, machucado, coberto de zombarias, imerge logo num rancor frígido, envenenado e, sobretudo sempiterno. ”
De forma intensa e recorrente, o protagonista é engolido por essa imundície; vivendo no subsolo. Certa vez, a exemplo, na primeira de suas memórias narradas, um policial arredou sua cadeira, num bar, de tal forma a ignorá-lo. Embriagado pelo desgosto, rancor e raiva, em sua mente, o protagonista elabora inúmeras formas de retribuir (em suas palavras) seu novo inimigo por tamanha humilhação que sentiu ter sofrido. Após segui-lo e espioná-lo por diversos dias, enfim encontra uma forma de realizar sua vingança: não lhe ceder passagem na rua. Porém, mergulhado no subsolo, a inércia o capturou por dias, e, num ato de desespero, realizou seu plano no último momento. Após seu plano ser bem-sucedido, acreditava ter mostrado a todos sua igual importância social em relação ao policial.
Estar na pobreza, viver na miséria, e trabalhar como um simples empregado, o consumiam até a alma, pois, em sua mente, isso degradava sua moral. Não é de se surpreender que ao participar da despedida de um colega, que não nutria qualquer empatia, ao tentar se vangloriar de suas faculdades mentais, tenha sentindo-se humilhado quando falaram de sua posição social. Embriagado pelo vinho, whisky, raiva e rancor, somado a febre e insônia, alimentou seus delírios, desejando esbofetear seus amigos, nem que lhe custasse a liberdade. No entanto, no ápice da loucura e insanidade, quando estava decidido a agredir seu colega que se dirigiu à um bordel, encontrou Liza, a prostituta.
Após uma noite de amor, paixão e delírios, o personagem se vê a sós com Liza, iluminada pela penumbra de uma vela. Atordoado, embriagado e apaixonado, ele convida Liza a abandonar seu local de trabalho para ficar na casa dele. Após dias de tormento auto infligido, noites sem dormir e angustiado, no meio de uma discussão fervorosa com seu empregado, o protagonista vê Liza entrando em sua casa. Perturbado por ser flagrado em meio a cólera, por ser visto em sua casa, simples e modesta, por ter sido visto na pobreza, chorou e amaldiçoado Liza de vê-lo nessas condições, mandando-a embora, em direção a sua antiga casa, mesmo após oferecer seu amor.
Em meio a tantas crises, surtos, delírios, cólera, podemos concluir, com certo grau de confiança, que o Eu lírico, o protagonista da obra, é, na realidade, perturbado. Apesar de enganar-se com a auta percepção de sua elevada inteligência e se considerar um homem de moral, percebemos que, no fundo, trata-se de um homem paranoico que busca, de todas as formas, atenção, para enfim não ser visto no subsolo.
Autor da resenha: Gabriel Vinicius Mufatto.