Projeto “Produzindo História” 2021 por: Marina Couto

Os dois textos a seguir foram escritos no início da pandemia, quando seu imaginário
caótico não chegaria nem perto do que enfrentamos. A publicação deles nesse momento
se deu por conta de problemas técnicos enfrentados pelo grupo PET-História da
Unicentro. É importante ressaltar que os autores dos textos passaram e evoluíram entre
o momento da escrita e o momento da publicação, mas que isso não tira a qualidade dos
textos.

O PASSADO, O FUTURO E O PRESENTE
Em maio de 2020 o mundo testemunhou a morte brutal de George Floyd, negro
norte-americano pela violência policial. Esse episódio desencadeou uma série de
protestos que apontavam a constante violência estatal sofrida pelos corpos negros e
reinvindicavam o direito de vida dessa população. Liderado pelo movimento “Vidas
Negras Importam” (Black Lives Matter) esses protestos tomaram proporções imensas e
abriram espaços para uma ampliação do debate sobre o racismo nos EUA, no Brasil e no
mundo.
A herança africana por muito tempo foi ensinada nas escolas somente e
exclusivamente sobre o aspecto da escravidão. Uma história marcada pelo sofrimento e a
submissão dos povos pretos para com a elite colonial brasileira, contudo essa narrativa
vem sendo desconstruída pelos afrodescendentes que buscam olhar para sua descendência
com alegria e orgulho. Esse resgate cultural muito se fez possível após as aprovações de
políticas afirmativas que abriram portas para mais pessoas pretas dentro das universidades
que consequentemente fizeram da sua vivência e de seus corpos objetos de pesquisa e
discussões dentro do meio acadêmico. É sobre esse resgate que a série/documentário
“SANKOFA: a África que te habita” aborda.
Produzida e financiada pela FBL Criação & Produção e Ancine – Agência
Nacional do Cinema, essa obra mostra o projeto do fotógrafo César Fraga de retornar a
África em busca dos lugares de memória dos seus antepassados, procurando similaridades
culturais entre os diversos lugares que o tráfico transatlântico transformou. Essa viagem
de retorno foi feita em conjunto com o historiador e pesquisador da cultura afro-brasileira
e diáspora africana Maurício Barros de Castro. A partir de um recorte histórico foi
estabelecido os países africanos que tiveram a presença do tráfico transatlântico português
e que mais encaminharam negros escravizados para o Brasil até o fim do século XIX. A
rota da mina, de Angola e de Moçambique que atualmente correspondem a Cabo Verde,
Senegal, Guiné Bissau, Gana, Togo, Benin, Nigéria, Angola e Moçambique, esse foi o
roteiro do fotógrafo e do historiador idealizado em 10 episódios de meia hora cada.
Essa viagem é apresentada por César e Maurício o mais transparente possível,
porém repleta de cores, formas e rostos das várias Áfricas visitadas pelos dois. Cada
obstáculo vivenciado foi relatado, como por exemplo a própria dificuldade de encontrar
uma agência de viagens que fornecesse o roteiro desenhado por César, o que fez com que
parte do trajeto fosse feita de carro. Muito dessa dificuldade parte pelo motivo de que
alguns dos países não tinham uma democracia consolidada e como o próprio César disse,
não fazem parte da África Gourmet. Como a logística, outras realidades acabaram por se
tornar pequenas barreiras para a conclusão do projeto. A diversidade de línguas e dialetos
eram outras preocupações importantes, no total 3 línguas são faladas nos países
identificados: português, francês e inglês, sem contar com os dialetos próprios de cada
grupo etnico que não partilhavam da mesma língua do colonizador.
Compreender esses empecilhos é importante a partir do momento que se deseja
adentrar um território como forasteiro, e também para que a breve passagem desses
indivíduos seja respeitosa. Ao contrário do que parece esse texto não procura fazer um
resumo dos episódios da série detalhadamente, como é uma obra audiovisual acredito que
nada escrito se equipare a como as imagens selecionadas para a obra atingem o
telespectador. Pretendo sim destacar pontos e discursos que chamaram minha atenção ao
decorrer da série.
O primeiro é algo notável desde do início ao fim, o entusiasmo nas falas de César
e Maurício. Os dois, claramente, tiveram prazer em fazer tal viagem e visitar esses
diversos países, mesmo que por razões diferentes. Isso faz com que os dez episódios, que
muito se assemelham com aulas de escola não se tornem algo desgastante, é uma nova
forma de expressar conhecimento e transmiti-lo também. Outro ponto muito interessante
é as narrações de mitos ao decorrer dos episódios, em cada um dos dez um mito é narrado
por Zezé Mota com direito a animações; são pequenas histórias que explicam origens de
variadas coisas, como o porquê cachorros e gatos não se dão bem, ou até mesmo o motivo
dos camaleões trocarem de cor. Elas são uma das maneiras de se adentrar na vasta cultura
africana.
Os diversos aspectos religiosos encontrados em cada região também dão um show
aparte; do islamismo ao vodun, os africanos transformam a religião em outras de arte,
sejam pelos seus artigos sagrados, pelos seus rituais cercados de sacrifícios, seus
casamentos cheios de cores e seus funerais dançantes. Cada passeio pelo sagrado da
África possibilitou com que narrativas preconceituosas e rasas fossem desmistificadas e
que as próprias religiões afro brasileiras como o candomblé encontrasse sua raíz.
Porém a memória mais viva do tráfico transatlântico de negros escravizados para
a América nos países da África são as portas do não retorno. Monumentos gigantes
erguidos onde antes eram localizados os portos dos navios negreiros, normalmente
voltados ao oceano que representavam as portas pelas quais saiam incontáveis pessoas
para serem vendidas e tratadas como objetos e quase nunca retornavam, quando não
morriam durante o percurso da viagem.
Muitos desses monumentos que representavam a tortura e exploração de corpos
negros durante o período de escravização foram ressignificados pelos seus
contemporâneos. Passam agora a lugares de celebração da cultura, da vida como por
exemplo o pelourinho da Bahia, maior símbolo da cultura baiana que nos tempos obscuros
da escravidão era lugar de açoitamentos e torturas de negros que não aceitavam a vida
escrava. O final da série é momento de reflexão, de compreensão de como a história
africana e afro brasileira vem sendo contada e como ela pode ser abordada sem que a
violência, tortura e exploração sejam o único meio de se representar. Essa série é
fundamental para aqueles que buscam sobre seus antepassados e sobre sua história. A
distância do Brasil e África é muito mais geográfica do que verídica, a similitude entre
nossos povos é quase incontestável e nos mostra toda a África que habita em nós.

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