Projeto “Produzindo História” 2020 por: Nathan Lermen

O controle da vida: das Leis de Nuremberg a Juden Raus

Não há Estado mais disciplinar,claro, do que o regime nazista;tampouco há Estado onde as regulamentações biológicas sejam adotadas de uma maneira mais densa e mais insistente.

(Michel Foucault)

As Leis de Nuremberg (Nürnberger Gesetze) foram promulgadas durante o III Reich e serviam para diferenciar os cidadãos alemães dos judeus que estavam na Alemanha. De acordo com Arendt (2008), a divisão era entre os cidadãos completos (Reichsbürger) e os nacionais (Volksbürger), considerados de classe baixa e sem direitos políticos. As leis se referem na verdade a um conjunto, constituído pela Lei de Cidadania do Reich e a Lei de Proteção do Sangue e da Honra Alemã. Como aponta Brepohl (2011), as Leis de Nuremberg detinham o controle sobre a liberdade matrimonial sendo que a primeira, regulava a concessão de cidadania por meio de um certificado e estipulava que os cidadãos deveriam ser fiéis e servir ao Reich. Já a segunda, determinava a proibição de qualquer relação entre um alemão e um judeu, conjugal ou extraconjugal. Para aqueles que haviam contraído matrimônio antes da vigência da lei, este estaria invalidado. Além disso, estava vetado a contratação de serviços de alemãs em casas de judeus. Caso houvesse qualquer violação destas cláusulas, os acusados eram aprisionados e deveriam trabalhar de modo forçado.

A partir de 1935, começou a circular um gráfico dentro da Alemanha intitulado “Leis de Nuremberg”, ele apresentava uma série de esquemas familiares/genealógicos que determinavam se uma pessoa naquele contexto era considerada alemã pura, mestiça ou judia e sendo assim, se a condição familiar possibilitaria que ela adquirisse a cidadania do Reich. O documento é subdivido da seguinte maneira: Sangue alemão; Mestiço de 2° grau, Mestiço de 1° grau; Judeu (I); Judeu (II). Para cada uma destas subdivisões existe uma simbologia com a seguinte significação:

Sangue alemão: Pertence a comunidade sanguínea alemã, pode ser cidadão do Reich.

Mestiço de 2° grau: Não pertence a comunidade sanguínea alemã, pode ser um cidadão do Reich.

Mestiço de 1° grau: Não pertence a comunidade sanguínea alemã, pode ser um cidadão do Reich

Judeu (I): Pertence a comunidade sanguínea judia, não pode ser um cidadão do Reich.

Judeu (II): Pertence a comunidade sanguínea judia, não pode ser um cidadão do Reich.

O documento possui um esquema genealógico para cada uma destas situações, pontuando desde os avós paternos e maternos até chegar na pessoa que será analisada. Além disso, fornece a informação de quando os casamentos são autorizados e proibidos e em que casos estes estariam cancelados conforme a nova lei de cidadania de 1935.

Figura 01 – Die Nürnberger Gesetze

Na adaptação cinematográfica de “A menina que roubava livros” (2013) sob o roteiro de Markus Zuzak, uma das cenas ilustra a captura de um judeu por soldados da Schutzstaffel. A cena apresenta uma aglomeração na rua e quando um dos personagens principais chega no local e pergunta o que está acontecendo, uma mulher com desdém diz:

– Ele é judeu, encontraram a certidão de nascimento. É um Lehman, só com um “N”.

Um dos sufixos mais comuns para sobrenomes alemães é o “mann”, no entanto sobrenomes asquenazes suprimiam um “n”. Nesse sentido, “Hoffmann” virava “Hofman”, “Lehmann”, virava “Lehman”. Era uma forma de identificar ascendência judia verificando os sobrenomes. Continuando a cena, o possível judeu era colocado dentro de um carro enquanto gritava pedindo por ajuda:

– Por favor

Meu filho está no exército!

Ele está lutando!

Vocês me conhecem!

Sou alemão!

As pessoas permaneciam imóveis e encaravam a cena com desprezo. Apesar da passagem deixar claro que o homem era bastante conhecido no bairro, não houve nenhuma reação, a não ser do personagem principal que acaba sendo empurrado pelo soldado quando tenta defender o homem. A partir do momento que se tira dos judeus a condição de cidadãos e de pertencentes ao Reich, se torna iminente a descartabilidade deste povo pelos alemães. Se nem cidadãos são, por que estes seriam passíveis do amparo do Estado? Apesar de Lehman ser pai de um homem que combatia a favor do Reich (portanto, mestiço), este não estava livre do campo de concentração.

Uma das temáticas de estudo que Michel Foucault se debruçou foi a que se refere ao poder. O poder construído e exercido no ocidente e a maneira como este se comporta perante a sociedade. Basicamente tem-se o poder soberano, um tipo de poder intrínseco à morte. É por ele que governantes do Antigo Regime, por exemplo, o exerciam com a justificativa da manutenção da ordem e do Estado. A autoridade poderia ser a mandante de uma série de assassinatos, sob a justificativa desse poder que controla quem deve ou não morrer, no caso o soberano podia exercer o poder tanto em seus inimigos quanto em seus súditos. A partir do século XVIII, sob o contexto do Iluminismo, Foucault aborda o surgimento de um novo tipo de poder: o biopoder. É um poder exercido sobre a vida e que podemos percebê-lo em instituições (como o caso de escolas, hospitais, prisões) que moldam os indivíduos para que estes sejam úteis/produtivos e dóceis conforme interesse do Estado, principalmente para as intenções do sistema capitalista. Quando estes indivíduos estão disciplinados, é que entra a biopolítica, ou seja, um poder de manutenção e gerenciamento só que agora não só para cada corpo, mas de toda uma sociedade. O nazismo, como apresentado na fonte, se embasava numa ideia de controle racial, em que se dividia as pessoas por categorias e segregava conforme a necessidade de proteção da raça ariana. Conforme Foucault (1999, p. 304):

No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros.

Numa sociedade pós século XVIII, embebida pela biopolítica de controle da vida, como lidar com aqueles que a princípio deveriam morrer? Em “Em defesa da sociedade” (1999), Foucault aborda o racismo como a peça chave para delimitar os passíveis de vida e morte. A concepção eugênica era extremamente presente na política nazista, que investia em propagandas que caracterizavam judeus e contribuíam para a propagação de discursos de ódio. Em 1936, tem-se o lançamento de um jogo de tabuleiro intitulado Juden Raus!, cujo objetivo dos jogadores estava centrado na maior expulsão de judeus por residência. O jogo se popularizou e era uma forma de incentivo para denúncias da presença judaica em cidades da Alemanha.

Figura 02 – Juden Raus!

O saber médico legitimava o culto à superioridade racial e impunha a justificação da morte daqueles que não eram arianos, numa tentativa de purificação e de uma sociedade desenvolvida. “O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem.)” (Foucault, 2007, p. 22). Eram frequentes propagandas que exaltavam as características físicas de um ariano, como os cabelos loiros e olhos azuis, e zombavam do corpo judeu, como o nariz curvado. Diferentemente do que ocorria com o poder soberano, que a política estava no cerne da morte, na biopolítica temos os aspectos biológicos (vida/pessoas/racismo) comandando as decisões governamentais.

Referências bibliográficas:

ARENDT, Hannah.  Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BREPOHL, Marion. Conter os casamentos mistos: Eugen Fischer num povoado livre do racismo. In: XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2011, p. 1-11.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: Curso dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FURTADO, R. N.; CAMILO, J. A. O. O Conceito de Biopoder no Pensamento de Michel Foucault. SUBJETIVIDADES, v. 16, p. 34, 2017.

A MENINA que roubava livros. Direção: Brian Percival. Roteiro: Markus Zuzak. EUA:
Fox Filmes, 2013. DVD (2h11min)

 

 

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