O PROGRAMA DE PESQUISA TEOLÓGICO NOS MODERNISTAS CATÓLICOS A PARTIR DO PENSAMENTO DE NANCEY MURPHY

O PROGRAMA DE PESQUISA TEOLÓGICO NOS MODERNISTAS CATÓLICOS A PARTIR DO PENSAMENTO DE NANCEY MURPHY

Por José Felipe Cravelin

Jfelipe-cr@outlook.com

 

Uma interessante abordagem acerca da relação entre ciência e religião é apresentada por Nancey Murphy em seu livro Theology in the Age of Scientific Reasoning (1991). Em um dos principais pontos desta obra, Murphy toma o pensamento Católico Modernista como um viés passível de superar os problemas enfrentados pela tradição teológica desde a Modernidade. A base desta interpretação está no fato de que os Modernistas argumentam que não há contradição entre o pensamento do catolicismo e o pensamento desenvolvido pela tradição epistemológica do mundo moderno. Nesse sentido, eles acreditam que os padrões utilizados para descrever, por exemplo, a racionalidade do empreendimento científico são análogos aos padrões da teologia. Destarte, o argumento central defendido por Murphy diz respeito à possibilidade de estabelecer programas de pesquisas lakatosianos nas teorias católicas Modernistas.

A precedente descrição da metodologia de Lakatos dada por Murphy, pode elucidar apropriadamente os fundamentos dos programas de pesquisa e conduzir mais rapidamente ao ponto central deste artigo:

Os elementos essenciais de um programa de pesquisa […] incluem uma série complexa de teorias na qual uma teoria central (o núcleo) permanece inalterada enquanto suas hipóteses auxiliares são modificadas e ampliadas conjuntamente para dar conta de um domínio crescente de dados. Além disso, um programa de pesquisa maduro é guiado por uma heurística positiva – um plano particular articulado para o desenvolvimento de um cinto protetor de hipóteses auxiliares diante de anomalias conhecidas, um competidor[1].

Este é um breve resumo dos programas de pesquisa, uma das metodologias mais influentes na Filosofia da Ciência. Quem já está afeito aos problemas filosóficos da ciência no século XX, irá reconhecer que a metodologia baseada em um programa de pesquisa pretende resolver alguns problemas na metodologia falsificacionista de Popper (1902-1994). Veja que embora o programa de pesquisa seja uma metodologia falsificacionista, seu inaugurador, Imre Lakatos (1922-1974), defende que não há na ciência algo como a substituição completa de uma teoria por outra teoria competidora, tal como se dá no falisficacionismo defendido por Popper. Segundo Lakatos, há alguns componentes, teorias e dados, que formam o programa de pesquisa e, uma dessas teorias, o núcleo, não muda, não enquanto o programa se mantiver hegemônico pelo cinto protetor das hipóteses auxiliares. Deste modo, Murphy busca demostrar que esta metodologia funciona de forma análoga nas teorias dos Católicos Modernistas.

Faço uma digressão em relação à metodologia dos programas de pesquisa para explicitar como que o Modernistas são introduzidos na discussão desenvolvida por Murphy. Os Modernistas são apresentados pela autora como uma alternativa à duas vertentes predominantes no pensamento teológico desde a modernidade, isto é, o cristianismo liberal e o ortodoxo. No capítulo I, Murphy argumenta que estas duas vertentes se submeteram às consequências epistemológicas ocorridas na Modernidade. Tais consequências, que estão ligadas a pensadores como Descartes, Pascal, Kant, Schleiermacher, e em especial Hume[2], derivam da construção de uma noção de justificação do conhecimento através de bases seguras e bem definidas, ou seja, o raciocínio científico provável[3], o qual excluiria a teologia devido a sua falta de confirmação racional. Como resultado, os católicos ortodoxos e também os liberais (Católicos e Protestantes) não tiveram uma outra alternativa a não ser buscar criar outros cânones para a teologia sem nenhuma justificação racional, o que para Murphy, aparentava representar um beco sem saída para a Teologia[4].

Contrária a estas consequências oriundas dos pensadores modernos, Murphy argumenta que foram desenvolvidas outras interpretações que poderiam ser postas como alternativas ao raciocínio provável dos filósofos modernos, fornecendo a possibilidade haver novos rumos para a Teologia à parte daqueles que foram traçados pelas duas já referidas vertentes teológicas. A principal destas interpretações, seria a de Wolfhart Pannenberg (1928-2014). Para Murphy, Pannenberg representa um ponto central na defesa de um conhecimento teológico análogo ao científico devido a três grandes motivos, são os que se seguem:

No capítulo dois, voltei-me para a teologia de Wolfhart Pannenberg porque seu trabalho desenvolve uma combinação de três importantes ingredientes para uma resposta ao desafio. Primeiro, ele repudiou a distinção entre teologia natural e revelação […]. Sua segunda contribuição foi um convite para a adoção do método científico para a teologia […]. Sua terceira contribuição foi ao insistir que a teologia cristã é a ciência de Deus[5].

O desafio ao qual Murphy se refere, é o de superar as interpretações céticas de Hume. Sem embargo, um ponto importante na argumentação de Murphy, é que mesmo que o pensamento contemporâneo tenha oferecido novos rumos que em grande medida enfraqueceu o argumento humeano, é perfeitamente possível conciliar a Teologia com o raciocínio provável da ciência. É neste ponto que Pannenberg se torna um adversário de grande potencial face aos argumentos céticos de Hume.

Entretanto, Murphy assinala que embora Pannenberg possa ser posto como um grande opositor ao agnosticismo humeano, sua metodologia não supera a metodologia dos programas de pesquisa de Lakatos. Um dos principais motivos, é o fato de que seu argumento sofre com algumas dificuldades que seriam insuperáveis[6]. Neste sentido, Murphy indica que a metodologia de Lakatos seria uma metodologia mais eficiente tanto em relação a Pannenberg como em relação às outras metodologias pensadas no contexto filosófico da ciência no século XX[7].

Como o objetivo de Murphy é demostrar que a Teologia pode ser aplicada através de um raciocínio científico, ela visa demostrar que a metodologia de Lakatos pode ser aplicada em um raciocínio teológico desde que este seja pensado de acordo com o raciocínio científico. À vista disso, Murphy compreende que os Modernistas ao buscarem levar o catolicismo às condições atuais do pensamento de sua época, abriram espaço para uma compreensão científica da teologia, podendo ser analisada através da metodologia dos programas de pesquisa de forma bastante apropriada. É importante notar que os modernistas surgiram através de um movimento de criticismo no pensamento Católico Romano, o que seria um indicio de que o dogmatismo tradicional do catolicismo – um grande obstáculo para uma interpretação científica da teologia – estaria entrando em declínio. Vejamos:

O movimento [modernista] foi provocado pela proliferação a partir da Alemanha até o circulo católico europeu dos resultados do criticismo bíblico e histórico. Estas descobertas tornaram claro para muitos estudiosos cristãos que a doutrina tradicional da inspiração verbal direta da Bíblia falhou ao considerar os conteúdos das escrituras, e que a igreja de seus dias difere radicalmente desde a igreja do Novo Testamento tanto em seus ensinamentos como na estrutura institucional[8]. (O grifo é do autor).

Deste modo, um dos objetivos dos católicos Modernistas foi dar conta destas diferenças que ocorreram ao longo dos anos nos ensinamentos e na organização institucional da igreja católica. Por exemplo, para o Modernista Alfred Loisy (1857-1940), o catolicismo constitui uma estrutura que se desenvolveu desde uma forma primitiva na era do Novo Testamento chegando até os dias atuais numa forma bem mais complexa, ademais, cada passo deste desenvolvimento foi necessário para a sobrevivência da igreja católica, a despeito do fato destes passos estarem à parte da verdade do cristianismo.

Como indica Murphy, os argumentos de Loisy conteriam um pressuposto metodológico que ajudaria a determinar, baseado em evidências históricas, cada passo do desenvolvimento do catolicismo, bem como as circunstâncias de suas mudanças[9]. Estas noções seriam teses secundárias de uma tese central defendida por Loisy, qual seja, a de que o catolicismo seria o verdadeiro herdeiro do evangelho cristão. Deveras, estas noções resumem o programa de pesquisa de Loisy tal como interpreta Murphy, onde as teses secundárias seriam as hipóteses auxiliares, e a tese central seria o núcleo que é protegido por tais hipóteses. Deste modo, Murphy considera que Loisy pode ser considerado o ponto inicial do desenvolvimento teórico de um programa de pesquisa teológico.

Seguidamente a Loisy, Murphy apresenta as noções centrais de George Tyrrell (1861-1909), onde seu trabalho constituiria na busca de uma defesa apropriada de um genuíno catolicismo. Isto estaria em consonância com o que Murphy considera ser de modo geral o núcleo de todo programa de pesquisa Modernista, ou seja, que o catolicismo genuíno é a fé verdadeira e reconciliável com o pensamento moderno[10]. Por certo, Tyrrell estaria de acordo com Loisy ao defender que o catolicismo é a fé verdadeira combatendo assim todos os potenciais competidores do catolicismo.

Tanto para Loisy como para Tyrrell, os principais opositores da teologia modernista seriam o protestantismo liberal, o catolicismo escolástico, e o catolicismo liberal. Sendo que o único destes que haveria buscando uma reconciliação da teologia com o pensamento moderno foi o protestantismo liberal. Todavia, o protestantismo liberal permanece sendo um opositor do catolicismo modernista pelo fato de que eles buscam uma reconciliação da teologia seguindo os pressupostos unicamente protestantes e, portanto, não encontrando conciliação com catolicismo Modernista. Isto justifica o fato de Tyrrell precisar continuar o intento iniciado por Loisy de defender que a fé católica é a única fé genuína herdada desde o Novo Testamento.

Entretanto, Tyrrell carrega uma diferença bastante importante em relação à Loisy. Enquanto que para Loisy, o catolicismo possui desde sua origem certos elementos rudimentares (ritos, dogmas, e estrutura hierárquica) que mantiveram vívido o cristianismo através da história, para Tyrrell, a única coisa que se manteve desde o início do catolicismo até os seus dias, foi o processo “natural” de purificação do judaísmo iniciado por Jesus. Os propósitos de Tyrrell são construídos a partir deste pressuposto, ou seja, buscar demostrar que o processo de purificação do judaísmo ainda é continuando pelo catolicismo contemporâneo.

Como já tenho indicado, o principal problema com o qual os Modernistas se deparam é em explicar as diferenças do catolicismo primitivo em relação ao catolicismo contemporâneo. Neste sentido, Tyrrell segue em busca dos ensinamentos primitivos de Jesus no catolicismo contemporâneo – a fim de fundamentar as hipóteses auxiliares –, e caso ele não os encontre, necessariamente haveria anomalias em sua teoria. Para Murphy, isto é um típico movimento de um raciocínio científico de base lakatosiana, isto é, uma busca pela proteção do núcleo da teoria através das hipóteses auxiliares. Ademais, como o método desempenhado por Tyrrell para provar seus objetivos baseia-se em evidências empíricas seria, por conseguinte, a falta de tais evidências que tornaria sua teoria degenerativa.

Para elucidar melhor as bases de sua teoria, Tyrrell apresenta uma distinção entre teologia e revelação, defendendo que estas possuem ordens diferentes de verdade e de conhecimento. Ao provar isto, ele iria ser capaz de explicar a relação entre as Escrituras e a vida devocional da Igreja. Pois bem, a estratégia utilizada por Tyrrell para provar sua posição se dá através da seguinte analogia: assim como o conhecimento científico da natureza é distinto da natureza por si mesma, a teologia e suas categorias abstratas são distintas da vida de um fiel[11]. Deste modo, as teorias teológicas representariam uma maior aproximação da experiência real do fiel; o mesmo se dá com as experiências relatadas pelas Escrituras – um nível de expressão comum ao do fiel. Isto proporciona, com efeito, o desenvolvimento das doutrinas da Igreja bem como de toda sua organização institucional, subsidiado pelo enquadramento da vida devocional com os fatos através da teologia[12].

Com isto, a teologia ganha uma nova compreensão, a saber, ela passa a ser feita através da construção de um conjunto de teorias que visam explicar experiências da vida da Igreja, “bem como das Escrituras, a primeira e normativa expressão deste tipo de experiência”[13]. Seguindo esta acepção, Murphy demonstra que o desenvolvimento das teorias teológicas seriam subsidiadas por fatos tais como registros históricos e arqueológicos. No que diz respeito a isso, Tyrrell é explicitamente claro que seu método é um método empírico que pode ser confirmado através de dados, entretanto, é em seu quinto capítulo que Murphy irá argumentar mais acuradamente sobre o que pode ser reconhecido como fatos que confirmam as teorias teológicas em um panorama que vai além da discussão das teorias Modernistas[14].

Para concluir minha argumentação a respeito dos programas de pesquisas dos Modernistas, devo indicar que tal como Murphy argumenta, uma das funções dos programas de pesquisa pensados por Lakatos é guiar um grupo de hipóteses que, quando articuladas, promovem um desenvolvimento acurado (heurística positiva) a fim de adequar a teoria com a realidade. De modo similar, Tyrrell visa demonstrar que a teologia busca adequar suas teorias com a real experiência devocional de um fiel, bem como explicar adequadamente as passagens das Escrituras e o desenvolvimento da Igreja Católica[15].

Em vista da caracterização delineada no presente texto, considero que os Modernistas oferecem uma considerável abordagem sobre a teologia ao associa-la ao pensamento epistemológico da modernidade. Ao acompanhar esta posição dos Modernistas, Nancey Murphy foi capaz de demonstrar que o raciocínio científico partilha de uma estreita relação com uma teologia fundada através de metodologias empiricamente fundamentadas, das quais os Modernistas seriam apenas um exemplo dos que acreditam nesta possibilidade. Quanto a isto, tanto Loisy como Tyrrell apresentam todas as características formais para um programa de pesquisa, todavia, eles não são os únicos que possuem tais características, ou seja, a argumentação de Murphy é mais ampla, não limitando-se nos Modernistas que foram apresentados neste texto.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MURPHY, Nancey. Theology in the Age of Scientific Reasoning. Cornell University Press, 1993.

 

[1] The essential elements of a research program […] include a complex series of theories where a central theory (the hard core) is unchanged while its conjoined auxiliary hypothesis is modified and amplified in order to account for an increasing domain of data. Furthermore, a mature research program is guided by a positive heuristic – a particular articulated plan for development of protective belt of auxiliary hypothesis in the face of known anomalies a competitor. (1993, p. 92).

[2] David Hume (1711-1776) é a peça central para compreender o abandono da autoridade católica na modernidade conforme a interpretação de Jeffrey Stout em sua obra Flight From Authority (1981). É sobre esta perspectiva que Murphy desenvolve a argumentação de seu primeiro capítulo. Deveras, Murphy enfatiza que os argumentos humeanos, em especial a sua crítica ao argumento do desígnio – tal argumento seria a última e a mais forte argumentação em favor da noção de que a natureza é testemunha da existência de Deus (Cf. nota 3) – são os principais responsáveis pela perca da autoridade Católica.

[3] Murphy indica que o raciocínio científico provável se desenvolveu a partir da mudança da concepção de “testemunha” da natureza. Antes dos pensadores modernos, tinha-se por certo que a natureza possuía um status epistêmico que testemunhava em favor da autoridade da Igreja, uma evidência externa em a favor do cristianismo. Contudo, com o desenvolvimento do pensamento moderno, o conceito de “testemunha” acabou sendo modificado, melhor dizendo, considerando os tipos de eventos que a natureza possui em si, seria a frequência em que estes tipos de eventos ocorrem que contaria como testemunha da natureza. De modo efetivo, isto contaria como evidência interna que demostra uma coisa importante, a saber, ao considerar que acontecimentos que servem como testemunha da natureza são internos a ela, então é possível que a natureza seja um “mecanismo” que funcione independe da determinação de um Deus. Tendo em vista todas estas considerações, o raciocínio científico provável deveria estar em consonância com a confirmação dos eventos da natureza, sendo fundado em bases sólidas do conhecimento tal como os fatos empíricos. (Cf. Ibidem, p. 5-12).

[4] Ibidem, p. 15.

[5] In chapter two I turned to the theology of Wolfhart Pannenberg because his work displays a combination of three important ingredients for a response to the challenge. First, he repudiated the distinction between natural and revelation theology […]. His second major contribution was a call for the adoption of scientific method for theology […]. His third contribution was to insist that Christian theology be the science of God. (Ibidem, p. 208-9).

[6] Cf. Ibidem, p. 43-50.

[7] No que diz respeito à Pannenberg, a metodologia de Lakatos é superior porque está mais em consonância com o raciocínio cientifico provável. Já em relação as metodologias científicas competidoras, no capítulo III, Murphy apresenta a metodologia dos programas de pesquisas analisando junto as metodologias opositoras do século XX, tal como o verificacionismo do positivismo lógico, o falsificacionismo de Popper, o pluralismo metodológico de Feyeraband, os paradigmas de Kuhn,  e a noção de tradição de pesquisa de Larry Laudan, sendo esta última a metodologia competidora mais atual. Com efeito, a argumentação desenvolvida pela autora neste capítulo tem o objetivo de demostrar que a metodologia de Lakatos é a metodologia mais completa e melhor aplicável em relação à todas as outras. Cf. Ibidem, Cap. III.

[8] The movement was provoked by the spread from Germany into broader European Catholic circles of the results of biblical and historical criticism. These discoveries made it plain to many scholars that the traditional doctrine of direct verbal inspiration of the bible failed to account for the contents of the Scriptures, and that the church in both teaching and institutional structure. Ibidem, p. 89.

[9] Cf. Ibidem. p. 95-6.

[10] Ibidem, p. 92.

[11] Cf. Ibidem, p. 100-1.

[12] Cf. Ibidem, 101.

[13] As well as the Scriptures, the first and normative expression of that experience. Ibidem, p. 102.

[14] Cf. Ibidem, Cap. 5.

[15] Cf. p. 102.

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