Meu, mas não para mim

Meu, mas não para mim

Isolada. Recolhida. Retirada. Nunca desacompanhada. O terreiro de umbanda que sempre fora tão cheio de carnais, durante minha feitura de santo ficou vazio. Os atabaques que ecoam nas giras, as palmas ordenadas, os gritos, as saudações, os brados dos caboclos, deram espaço a um silêncio ensurdecedor. A energia dos trabalhos que sempre esquentaram o corpo, agora gela. Luz, apenas das velas. 

Lá fora um janeiro chuvoso, dias com sóis tímidos e céu indomável. A ventania que assobia as frestas. A tempestade zangada. A natureza entrega o Orixá que está sendo feito através do tempo. Eparrey. Iansã, a senhora dos raios e trovões. 

Não tem diferença entre o dia e a noite, não é possível saber as horas e nem se tem notícias do que acontece da porta do terreiro para adiante. A trilha sonora são os pensamentos, intuições e falas misturadas dentro da cabeça que tornam o sagrado invisível em material. 

Deitada na esteira de palha, levanto-me incorporada numerosas vezes, desafiando o corpo físico e as limitações que ele possui. Entre uma manifestação e outra deito-me novamente, em alguns momentos me emociono e em outros me envaideço. 

Com o passar dos dias, a sessão fechada vai chegando ao fim. Na manhã do sábado, posso ouvir os passos corridos das pessoas que estão arrumando o lugar para a saída de meu santo que acontecerá no fim do dia. Penso, é hoje.

Visto a roupa branca farta que separei para este momento. Meu pai de santo me orienta sobre a coroação e munido de um punhal afiado, faz incisões em meu chacra coronário. Estranho imediatamente a ausência da dor e choro de emoção lágrimas tão pesadas que fazem barulho ao cair sobre minhas vestes. Segundos se tornam horas.

Posteriormente deito-me, cabeça coberta, pensamentos vácuos. O barulho mental se ausenta e o silêncio é agora ainda maior dando espaço à ansiedade. Uma cortina me separa do resto da estrutura do terreiro.

De olhos sempre fechados, ouvidos atentos, sei que meus convidados, irmãos de fé, pais e mães de santo estão chegando. Reconheço as vozes, os perfumes. Os sons retornam colossais.

A fumaça da defumação seca a garganta, a percussão bate acelerada no ritmo do meu coração, as cantorias declaradas e a cada palma, estremeço. A inconsciência me domina por um tempo incógnito.

Quando abro os olhos, estou em pé na frente de todos que soluçam emoções, as quais também não quero controlar. 

Meu olhar é diferente, enxergo com luminosidade extrema. Os abraços são apertados, sinto novamente calor.

Sigo dirigindo a gira instintivamente, bato o adjá, grito palavras em yorubá e num sorriso largo acolho os filhos da casa que a partir desse momento não me chamam mais pelo nome, e sim de mãe. 

Foi necessário estar recolhida. Para transbordar povos, só cabia eu. Sou uma, mas não sou só.

 

Informações Técnicas:

Autor: Autora e médium: Aline Koslinski

Terreiro: Templo de Umbanda Reino de Iemanjá | Cidade: Guarapuava

Equipamento: Câmera Sony semi profissional 50mm, celular Samsung A20 e iPhone 11.

Ensaio na íntegra: https://drive.google.com/drive/folders/1w7rWHvIQCuPkvfbgQsmJiGjuPRfdA3oV

Ensaio Documental produzido por Aline Koslinski, revisado por Viviane Almeida Moreira e editado para o Colmeia para Aline Koslinski.

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