Além de fatos e dados: apenas a história

Summary

Para aqueles que fogem de seu país, as lembranças têm uma única nacionalidade

Um homem ouve gritos vindos de um caminhão abandonado em San Antonio, no estado americano do Texas. O que não esperava era se deparar com uma cena de terror. Cinquenta e três corpos empilhados. Mexicanos, hondurenhos e guatemaltecos, migrantes ilegais em território norte-americano, mortos sufocados. A notícia que chocou o mundo parece inédita, mas não é. Anos antes, 71 imigrantes do Oriente Médio foram encontrados sem vida em um caminhão rumo à Alemanha, o fato marcou o início da crise dos refugiados na Europa. 

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), até maio de 2022, 100 milhões de pessoas se viram forçadas a deixar suas terras devido a desastres naturais, pobreza extrema, violência e conflitos que assolam o mundo. Enquanto esses indivíduos buscam por uma vida melhor, o momento é marcado pela ascensão do nacionalismo em países desenvolvidos. O sofrimento dos grupos que partem de sua terra para uma vida melhor vem alarmando a comunidade internacional. Em meio a uma crise imigratória, seja o venezuelano, o afegão, o congolês ou o ucraniano, todos são apenas peças em um jogo de xadrez político. Essa é a história de duas mulheres. Vidas que recomeçaram em Guarapuava, um lugar muito distante da sua casa. Um conto do presente e do passado de pessoas que partiram de seus países em rumo a um futuro digno, acolhidas em uma cidadezinha no interior do Brasil.

Venezuela, 1979. Assim que abre seus olhos, uma garota se depara com um céu azul. É mais um dia em Táchira, um estado no oeste da nação sul-americano. A pequena Dimara Galue de Villegas desejava nunca crescer, queria que viagens com sua família nunca tivessem fim, seja aquelas em que bebiam chocolate quente nas frias montanhas de El Zumbador, ou naquelas que passeavam pelas praias ao norte do país.

Os aromas adocicados e florais da Venezuela, as músicas animadas, as belas paisagens naturais e os costumes. Dimara amava aquilo. Amava os pãezinhos feitos de milho – as arepas, e esperava ansiosamente para comer as hallacas e o hervido do res, uma massa de fubá recheada envolvida por folhas de bananeira e um cozido de carnes e legumes, respectivamente.

Filha de um casal apaixonado, a moça de olhos castanhos, tinha oito irmãos. Seu pai era um homem trabalhador, dono de uma empresa que levava o leite das fazendas para as fábricas de processamento. A garota levava uma boa vida. Quando as festas de fim de ano chegavam, sua família recebia os parentes de outras cidades. Era naquela casa em que morava, que passava todos os anos novos, compartilhando momentos com sua grande família, esperando que os sorrisos fossem eternos.

Venezuela, 1999. O país rico das minas de petróleo quebrou. Uma crise política e econômica na nação hispano-americano abalou uma série de questões internacionais. O governo que não investiu em outros recursos econômicos, não esperava que, do dia para a noite, o preço do petróleo despencasse e rapidamente uma crise humanitária se instaurasse no país.

Independente de tudo, Dimara, agora adulta, ainda tinha esperança de que sua Venezuela superasse a crise, acreditou ano após ano, mas a situação só piorava. A mulher que trabalhava em um banco viu seu filho mais velho ser preso devido à sua atividade política. Foi nesse momento que decidiu sair da Venezuela, aquele lugar que marcou sua pele, agora teria que deixá-lo. Com uma mala só, Dimara, seu marido e seus quatro filhos partiram em direção à Colômbia.

Afeganistão, 1998. Na província de Maidan Wardak, dois pais brincam com sua filha, um bebê que mal tinha um ano. Em meio a dominação de seu país pelo grupo fundamentalista  islâmico, o talibã, um jardineiro e uma cozinheira de uma agência do governo lutam para dar para seus três filhos uma vida melhor. Pouco tempo depois de Mina Mizard nascer, os Estados Unidos invadiram o país, era o início de uma das mais longas guerras civis que o mundo já presenciou. Apesar dos pesares, era ali que a história da família seria escrita. Aquela bebê, a qual se chamava Mina, cresceu com uma vida simples, morava em uma pequena casa com seus pais e seus irmãos. E por mais que a educação do país fosse sucateada, além do difícil acesso, a garota que tinha grandes sonhos, amava

estudar.

O país de um povo gentil e hospitaleiro, nação das altas colinas do sul da Ásia e do Buzkashi, um dos esportes mais praticados no território, surpreendia os próprios locais. À medida que Mina crescia, se encantava cada vez mais. As milhares de receitas de Kabuli Pulao, iguaria do país que consiste em arroz com carne de cordeiro e uvas-passas, um prato que todos no país sabem fazer e cada família afegã tem seu próprio modo de preparo. A garota passava horas e horas esperando para comer Aushak, a iguaria celebrativa afegã, um bolinho recheado de molho de tomate e cebolinha ou alho-poró. Aquela garota com um grande coração cresceu em meio a uma guerra civil, mas os parques verdes nos fins de semana, o sol radiante e o céu azul, os aniversários com seus amigos e as brigas bobas com seu irmão tiravam dela sorrisos genuínos. A vida era boa.

Afeganistão, 2021. Vinte anos depois do início de uma guerra civil, o mundo se chocava novamente, o Talibã reassumia a liderança do país. Foi pouco tempo até o caos ser instalado na região. Os quatro cantos da terra presenciavam imagens assustadoras, afegãos se pendurando em aviões em movimento e os cidadãos desesperados para fugir de um regime que oprime, machuca e mata. As possibilidades futuras revelavam um sentimento de terror. Mina pensou em seu país, pensou em seu povo. Seu coração estava assustado, a vida que um dia levou estava perto de ser apenas mais uma lembrança. O medo tomou conta de sua família, não haveria outra escolha. Era hora de partir.

Brasil, 2023. Dimara olha pela janela, o céu também é azul, assim como o de Táchira. Há três anos, deixou a Colômbia e foi acolhida no Brasil. A língua se tornou uma barreira, mas a venezuelana de 43 anos se reergueu em Guarapuava, conheceu pessoas maravilhosas que a ajudaram nesse processo e hoje é dona de uma empresa de delivery de comida asiática na cidade. Ainda que longe, as lembranças de seu país aquecem seu coração. “Minha Venezuela era uma terra mágica onde tínhamos tudo”, lembra Dimara.

Mina pensa na sua nova casa. Tudo é diferente, a língua, o povo, a cultura. Nove meses atrás, a garota de 24 anos chegou no Brasil e, apesar das dificuldades, vem se sentindo acolhida no país latino-americano. Olhando para trás, Mina se lembra do Afeganistão, são mais de 13 mil quilômetros até seu país natal, lembranças de uma vida feliz que ela imaginava ser eterna viajam entre seus pensamentos. Em Guarapuava, ela recomeçou, porém, seja onde for sua nova casa, o sangue que corre em suas veias sempre será afegão. “O Afeganistão era um belo país onde as pessoas viviam no território com diferentes culturas e idiomas.”, diz a nova residente do Paraná, Mina Mizard.

O drama que assusta também é um recomeço. São duas histórias. Mulheres que não tinham nada em comum, exceto que não tiveram medo de recomeçar.

Dimara Galue de Villegas e Mina Mizard, os milhares de quilômetros não foram capazes de fazê-las desistir, então elas lutaram. Lutaram por suas vidas, lutaram por seu povo.

 

Curtiu o texto? O Colmeia tem uma série de reportagens sobre a vida do imigrante no Paraná, clique aqui para ouvir Imigrantes: Sonhadores do Mundo

Texto:  Heloisa Zolinger Polak

Edição: Millena Ricardo

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