Cemitério: Há vagas!

Benjamin Franklin uma vez disse: “Nada é mais certo nesse mundo do que a morte e os impostos”. Adentrar um cemitério é atestar essa realidade. Pensamos que a morte é um fator universal. Um denominador comum que racionaliza todos os homens, independente do que eram quando vivos. Em termos metafísicos, talvez estamos certos. Não há evidência científica para constatar diferentes destinos no pós-morte. À parte de crenças religiosas, é claro. Quanto ao mundano, sempre conseguimos segregar a morte. Outrora, faraós eram mumificados e sepultados em pirâmides e zigurates, enquanto hebreus eram jogados em valas comunitárias para servirem de alicerces.

 

Hoje, é o capitalismo que dita o “post mortem”. A banalização dos fenômenos naturais alcançou até o mais definitivo. É impossível organizar um funeral — uma atividade desagradável por natureza — sem se dar conta da burocracia e do custo. Cada prova de afeto é correspondida por um gasto adicional. Um bom terno, para acompanhar o corpo embalsamado, por exemplo. Ninguém pode ir mal vestido a um velório, nem mesmo o homenageado. E antes um paletó de madeira a um de poliéster.

 

Ao caminhar pela calçada esburacada desse cemitério, mesmo o olhar mais despretensioso consegue diferenciar os bem afortunados dos mais humildes. Não que haja verdadeiro luxo no lugar, nem mesmo os vivos são tratados com muita gentileza. Uma viúva poderia logo se juntar ao marido apenas com o tropeçar dos pés. Um fêmur partido ou uma bacia quebrada, não precisa de muito. Só caberia aos filhos e netos escolherem o mais almofadado caixão e santuário. Caso não cabe no orçamento — ou a velha não tenha sido bem-quista — é só reservar o lote.

 

Para os pobres bem-amados, ficam as lágrimas dos parentes e a beleza que tiveram em vida, pois não terão nenhuma na morte. 

 

É importante compreender a natureza monetária dos cemitérios, ou o relato a seguir não terá lógica. O objeto de estudo, em particular, está localizado no Bairro Santa Cruz de Guarapuava. Conta com uma avaliação de 4,5 estrelas no Google. Mas não há como garantir que os vivos tenham sido imparciais na decisão. Pelo contrário, sob uma ótica sínica e racionalista, é no mínimo decepcionante. Os “moradores” são cercados por um muro, o qual há anos precisa de uma demão de tinta, expondo tijolos na argamassa como as costelas de um cadáver. Para as visitas, é necessário atravessar o arco gradeado que chamam de portão, nada convidativo. À primeira vista, o local é desolador, opinião que só se fortalece conforme a exploração. Qualquer beleza ou aura são apenas sustentadas por noções do sagrado ou profano. Se a natureza do local fosse outra senão a preservação dos mortos, haveria queixas na prefeitura. Um pedido formal de demolição não demoraria a ser ratificado.

 

A menos que você seja um cultista ou membro da família Addams, há pouco o que fazer em um cemitério caso não tenha ninguém familiar para visitar. Os mortos eram configurados sem padrão ou razão aparente, pessoas de diferentes décadas ou séculos amontoadas lado a lado, cada sarcófago de concreto disputando espaço no chão irregular. Os espaços entre os “vizinhos” se tornavam cada vez menores, imagino que afunilaria visitas em uma linha indiana. Parentes dedicados o suficiente para aguentar o corredor claustrofóbico, poderiam deixar suas flores e orações. Isso, se houvesse alguém além de alunos curiosos e trabalhadores cansados.

 

O cemitério permanecia resoluto, os passos no chão de pedra e o risinho involuntário ao encontrar um nome engraçado nas gravuras faziam pouco para preencher o silêncio. Não estou falando da total — ou parcial — ausência de som. O fenômeno físico, o transporte de ondas sonoras pelo ar, é só parte do “todo”, da atmosfera que depositamos em lugares como aquele. Crenças individuais, como a psicanálise pode explicar, são contagiosas sob circunstâncias específicas. Não é a evangelização, não afirmo que um cemitério possa converter um ateu, pelo contrário, pode reforçar a descrença em um Deus absoluto. Refiro-me ao mais primitivo elo espiritual, das mitologias de outrora que hoje nos divertem pelo absurdo. Na maior parte, desagradáveis.

 

“Memento mori”. Ninguém gosta de ser lembrado da morte, ainda assim, todos sabem que vão morrer. É inexpugnável, tão certo quanto o imposto de renda e igualmente trágico. Imagino se no leito de morte, todos nós nos imaginamos como a exceção. Um novo milagre. Será que ainda temos ambições fúnebres após isso? Se dada a escolha, preferimos um marco austero ao chão de terra batida?

 

Impossível imaginar que alguém ao meu horizonte gostaria de, em vida, estar ali. Não é apenas uma discordância estética, como os azulejos coloridos que vemos em catálogos para banheiro adornando a cama do descanso eterno. Ou os cartões plastificados com fotos e dizeres porcamente diagramados. Nem mesmo aos caixões erguidos um acima do outro, como edifícios mórbidos. É a forma com que cada um é lembrado, a riqueza que define se somos mais que uma vala sem nome. Quanto tempo deve levar para que a imagem de um pai dê lugar a um dos frios monólitos de concreto? E dentro do padrão, isso ainda é um privilégio.

 

Esses são os casos dos cidadãos de apreço. Das pessoas que se transformam na paisagem. E quanto aos párias e esquecidos, talvez ainda consigam um lugar naquele chão esburacado. Um pouco de pedra para cobrir a terra, quem sabe? Ou mesmo uma identificação. Em morte conseguiriam pertencer à sociedade que não os quiseram em vida?

 

Após desbravar as vias em uma viagem no tempo, conhecendo o recorte das eras de Guarapuava, deparei-me com a curiosa presença de um casal de cruzes brancas. Não havia nome ou qualquer forma de reconhecer quem ali parecia. Na verdade, não era possível nem deduzir quando foram sepultadas. Seguindo a linearidade do raciocínio, a primeira suposição foi a de gêmeos natimortos. As dimensões eram as mesmas, idênticas e uma ao lado da outra. Talvez a falta de nome fosse decorrência da morte prematura. 

 

Porém, a verdade era outra. Aquele era um marco ainda mais triste. Talvez a mais trágica forma de pertencer a um cemitério. Eram aqueles dois leprosos, pobres de corpo e dinheiro. Alguém que desconhecesse a história da hanseníase no Brasil poderia tomar aquilo como um absurdo. Para alguns, era a enfermidade que Jesus expulsava e nada mais. Não sabiam da construção de cemitérios particulares, onde os que sucumbiam à doença eram jogados.  Dos pobres, mais vulneráveis à doença, que eram despersonalizados. Após dias ou semanas afastados de seus familiares, não podiam se encontrar nem mesmo em morte.

 

A razão para não haver nomes é simples, ninguém mais os conhece. Leprosários amontoavam pacientes, pobres moribundos em uma longa e dolorosa caminhada até a morte. Eram números em uma tabela, ao máximo. As ossadas, imagino, foram transportadas ao cemitério local recentemente, como uma forma de retratação histórica. Se isso é um alento para as duas vítimas, não há como saber nesse mundo.

 

Em um clássico exercício de observação, filósofos ponderam: “”Se uma árvore cai em uma floresta e ninguém está por perto para ouvir, ela faz barulho?”

 

O questionamento parte do princípio lógico de que os fenômenos como conhecemos são as interpretações de referenciais. Sem eles, como poderíamos estar ciente dos fantasmas do mundo. Quando lemos uma inscrição, mesmo que no mais vagabundo dos cartões: “pai”, “filho” ou “amigo”, realizamos que houve algo além da matéria em um específico corpo. Mas quando não há mais ninguém que se lembra para escrever seu nome no túmulo, será que você realmente existiu?

 

Ser parte da necrópole em anonimato, ainda assim, é o mais otimista prospecto para alguns.

 

Texto: Daniel S. Simon

Edição: Maria Isabela Andrade

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