Transcender espaços, transformar ambientes, transmutar, trans
Summary
Ainda que dados indiquem a questão da prostituição, as mulheres trans ocupam progressivamente espaços notáveis e influentes na sociedade.
Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em pesquisas do ano de 2021, estima-se que 90% da população trans brasileira tem a prostituição como principal fonte de renda e única possibilidade de subsistência. De acordo com informações do Projeto Além do Arco-Íris/Afro Reggae, do mesmo ano, em média, as pessoas deste grupo são expulsas de casa aos 13 anos de idade durante o processo de reconhecimento e transição. Os índices do projeto ainda apontam que apenas 0,02% estão na universidade, 72% não possui o ensino médio e 56% terminaram o ensino fundamental.
Esses dados são os efeitos causados pela dificuldade que essa comunidade tem para se inserir no mercado formal de trabalho, bem como pela deficiência na qualificação profissional, questões ocasionadas pela exclusão social, familiar e escolar. Nesse sentido, as mulheres trans representam a maioria massacrante dos índices. Segundo o professor de história da Unespar e antropólogo José Ronaldo Fassheber, a necessidade de buscar o sustento é uma das maiores motivações para essas mulheres adentrarem o meio.
“A prostituição não é uma opção, mas uma falta dela para as mulheres trans no mercado de trabalho, pois sobra para elas profissões ligadas ao sexo ou salvos casos, a área de estética e beleza. Sendo assim o próprio corpo torna-se um instrumento de trabalho, corpo esse que não é aceito pela sociedade”, relata o antropólogo.
O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Incoerentemente é também o lugar onde mais se consome pornografia deste grupo. A estimativa segundo a Antra, é que a cada 48h uma pessoa trans seja assassinada em terras brasileiras. A idade média da vítima é de 27 anos. E é na prostituição que se encontra a maioria esmagadora: 70% dos assassinados foram direcionados às profissionais do sexo, sendo destas, 55% aconteceram nas ruas.
Num cenário como esse a participação da comunidade trans em espaços políticos, sociais e artísticos torna-se extremamente importante por conta da representatividade que traduz. A ex-bbb Ariadna Arantes é maquiadora e foi a primeira participante trans na história do reality show Big Brother Brasil entrando na 11ª edição do programa. Exatamente 10 anos depois, neste ano de 2020, Linn da Quebrada que é cantora, compositora e atriz, compõe o elenco do BBB em sua 22ª edição.
Segundo Patrycia Fiuza (24), mulher trans, guarapuavana e seguidora destas personalidades, a participação destas mulheres na programação da Rede Globo é de extrema importância social.
“É maravilhoso se enxergar na televisão, nas novelas, nos filmes. Quando me entendi trans não havia nada que me representasse, pelo contrário, a normatividade julgava e julga ainda mulheres como eu”, conta Patrycia.
Linn da Quebrada tem tatuado o pronome “ela” na testa, sobre a sobrancelha esquerda e relatou na programação ao vivo do BBB que realizou a marca para que sua mãe sempre lembrasse de como devia tratá-la, já que mesmo apresentando um corpo feminino, as pessoas continuavam a chamando pelos pronomes masculinos. Situações que a artista enfrentou também com os companheiros de confinamento.
Nesse sentido, Patrycia revela: “o que Linn da Quebrada está fazendo no BBB é mais uma contribuição política do que entretenimento porque mostra algo latente e encoraja as mulheres da minha comunidade”, e relembra: “comecei a me prostituir com 14 anos de idade porque era nas avenidas de Guarapuava que eu encontrava mulheres iguais a mim”.
Vitória Bucheneki (22), também é guarapuavana e como influencer digital participa de diversos espaços políticos e sociais na cidade, podendo falar sobre sua realidade e história. Através do Pod Cast Agita Guarapuava, ao dar uma entrevista sofreu diversos ataques em suas redes sociais.
“Teve muita gente me parabenizando pela entrevista, mas por outro lado diversas ameaças, inclusive de ex-parceiros. Estamos tentando falar, nos matam, nos calam, mas não desistimos jamais e passo por isso por ser trans pois nunca estive na prostituição, sempre trabalhei de forma autônoma com as redes sociais”, considera a influencer.
A dentista Simone Pontes (30), atende no posto de saúde do bairro Vila Carli em Guarapuava e tem várias pacientes transgênero. Simone relata que nenhuma possui o documento com nome social, ou seja, são chamadas pelo nome masculino, gerando constrangimento.
“Elas chegam no consultório e percebo que a enfermaria tem prazer em nomeá-las pelo nome que está no cartão sus, ainda que eu já tenha colocado observações no cadastro de cada uma. Os demais pacientes riem, bem como os servidores e isso me entristece, afinal de contas não é difícil se dirigir à uma mulher com os pronomes femininos, é natural”.
Segundo o antropólogo José Ronaldo Fassheber o que impede muitas mulheres trans de requerer o direito ao nome social é a falta de acesso, de politização, anseio da família ou ainda casos de não entender como necessário.
Como vereadoras, deputadas, ministras, pouco a pouco as mulheres trans por todo mundo ocupam espaços na função pública propondo iniciativas de uma governança igualitária e propostas que defendam os direitos da comunidade LGBTQIA+ principalmente no que se refere a letra T da sigla, que representa a população trans e travesti.
Em 2020, Érica Hilton foi a vereadora mais bem votada nas eleições municipais para a Câmara Municipal de São Paulo, contabilizando mais de 50 mil votos. Érica é a primeira trans eleita para o mandato, bem como a pioneira em coordenar um parlamento no Brasil, além de presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal paulista.
Em Minas Gerais, Duda Salabert bateu recorde de votos na Câmara Municipal de Belo Horizonte contando com mais de 37 mil eleitores em 2020. Duda foi a mulher trans mais votada da história do estado, bem como a primeira transexual do Brasil a efetivar o direito de licença-maternidade por 120 dias pelo INSS, além de disputar o cargo de senadora, ainda que não tenha sido eleita, recebeu mais de 351 mil votos em 2018.
Com isso, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), as eleições municipais tiveram um recorde de candidaturas e pessoas trans eleitas. Foram 294 inscrições pelo Brasil, destas, 30 candidaturas coletivas, 2 para prefeitura e 1 para vice prefeitura, representando um aumento de 226% em relação a 2016, quando foram apenas 89 candidaturas no total. Em 2020, o número de pessoas trans eleitas quadriplicou, já que são 34 contra 6 eleitas em 2016. Esse índice pode ser ainda maior, pois é atualizado continuamente pela Antra.
A gaúcha Kely Braga (29), é militante trans e têm o sonho de disputar as eleições municipais da cidade de Pelotas, onde reside, já que participa ativamente dos debates sobre os direitos humanos da comunidade.
“Comecei a me prostituir aos 15 anos de idade por não encontrar minha identidade trans em outros lugares, mas ainda que eu estivesse naquela realidade sempre questionei onde estariam minhas irmãs e o porque não estavam nos cargos mais altos da sociedade, dessa forma passei a conhecer a política para poder ocupar esses espaços. Iniciei através de coletivos feministas e hoje oriento outras meninas que passam o que passei, pretendo um dia representa-las na câmara”, relata Kely.
Renata Oliveira (38), professora de matemática da rede pública de Ponta Grossa, é a primeira mulher trans servidora da escola em que trabalha e em 2021 disputou a eleição para diretora do colégio.
“Fui bem recebida pelos pais dos alunos quando fiz a campanha, percebi até algum estranhamento, ainda que não tenha conseguido adentrar a diretoria foi uma experiência muito bacana para mim e com certeza para a comunidade que pertenço também. Não desisti e com certeza na próxima eleição estarei novamente me candidatando”, conta a professora.
Acesse a galeria de fotos da reportagem: https://flic.kr/s/aHBqjAu9t7
Grande reportagem (2021) de Aline Koslinski e editado para Colmeia (2022). Fotos: Aline Koslinski.