Atenção: identidade artística nacional em crise. Ação!

A desvalorização do cinema nacional ameaça a economia e o patrimônio cultural do Brasil.

 

Em 1964, o público assistia uma atriz, desesperada, ser escalada por uma tarântula.  Chegava aos cinemas brasileiros “A Meia Noite Levarei sua Alma”. Era a estreia de Zé do Caixão.  O primeiro sucesso de José Mojica Marins é um marco, não só do gênero de terror, mas de toda a dramaturgia brasileira. 

 

Autodidata, o diretor, ator e roteirista é ainda um dos maiores expoentes do cinema nacional. Seus filmes, macabros e soturnos, eram frutos de uma mente inventiva, dada a técnicas pouco ortodoxas.  Como deixar amarrada à cama a personagem, sem avisar a intérprete da participação do aracnoideo. Afinal, poderia tamanho medo ser replicado de outra maneira?

 

Ao longo da carreira, Mojica dirigiu e atuou em vários projetos. Por vezes reprisando sua mais célebre personagem, o coveiro em busca da parceira ideal. Até 2020, ano de sua morte,  havia contabilizado mais de 40 entradas em sua filmografia.  Polêmico e carismático, o diretor paulista é retrato fidedigno do cinema brasileiro. Esnobado pelos programas de apoio cultural da época, Embrafilmes, migrou para o cinema popular. Para sobreviver, abandonou a capa e os rituais satânicos pela nudez e erotismo das pornochanchadas. Ainda convencido que poderia contribuir para a arte, voltou-se para a pornografia. Em “24 Horas de Sexo explicito” gravou a primeira cena de bestialismo do cinema brasileiro.

 

Ainda assim, se não fosse o apoio de leais admiradores, Mojica poderia ter caído no total anonimato. Este é o cruel destino de inúmeros cineastas brasileiros: esquecidos no tempo. Com sorte, alguns ainda conseguem se preservar na miragem de histórias e personagens, mas sem traços dos artistas que eram. Zé do Caixão sem Mojica.

 

Hoje, o cinema é uma indústria bilionária, com bilheterias comparáveis ao PIB de pequenos países. Pela densa população, o Brasil é um mercado consumidor significativo, atraindo até mesmo eventos de promoção de conteúdo, como as ComicCon. Entretanto, o cinema nacional não acompanha o acelerado desempenho das produções internacionais, nem mesmo no próprio país. Uma desvalorização que impacta tanto econômica quanto culturalmente o Brasil.

 

É difícil imaginar que os irmãos Lumière tivessem compreensão das mudanças que a introdução do cinematógrafo teria na sociedade contemporânea, todos os desdobramentos políticos e econômicos da sétima arte. Filmes, desde então, serviram vários distintos propósitos — por interesse monetário ou ideológico — de instruções educativas ou históricas às propagandas soviéticas e de Goebbels. Ainda assim, a finalidade principal do cinema continua a ser o entretenimento, com demais aprofundamentos artísticos oriundos do interesse de estúdios e diretores. Acima de tudo, é o alicerce de toda uma inédita dimensão da indústria: a produção do escapismo.

 

Mais de um século depois, a singela audiência assustada dos Lumière — que pulava de seus assentos na iminência de um trem projetado na parede — deu lugar a uma clientela fervorosa e o Éden-Théâtre de Paris foi substituído por inúmeras salas de cinema ao redor do mundo. O entretenimento, agora, é tão valioso quanto commodities ou indústrias de base. Evidências constam que a primeira exibição cinematográfica no Brasil ocorreu em 1896, um ano após a invenção do equipamento, no Rio de Janeiro. Nos anos seguintes, salas foram inauguradas em metrópoles do sudeste. Era uma época de produções nacionais de baixo nível técnico e pouco orçamento, ainda assim, exibições se tornaram parte da vida noturna local.

 

Foi a partir de 1910 que o Brasil começou a receber um fluxo de obras norte-americanas. As políticas de aproximação com os Estados Unidos nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial vieram a caráter das fantasias Hollywoodianas. Isso não só representou o sufocamento do cinema nacional, como vinculou o Brasil em uma dependência de entretenimento similar à necessidade de capital estrangeiro da época.

 

Décadas depois, a intrínseca conexão com Hollywood montou na cabeça do brasileiro, como uma convenção social, o estigma das produções nacionais. Simultaneamente, o país se sujeitou aos caprichos e censuras estrangeiras. Com a ascensão do Macarthismo em 1950, movimento de extrema perseguição aos comunistas dentro dos Estados Unidos, houve maior exercício do Código Hays, censura.

 

Esse rígido conjunto de normas aos grandes estúdios ditava quais elementos eram condizentes com as produções cinematográficas. Condutas consideradas subversivas eram passíveis de acusação de traição. Entre as infrações, referenciar casais inter-raciais. Já naquela época, o porcentual demográfico de negros e pardos era muito expressivo no Brasil. Comprometer-se com a indústria do entretenimento, então, foi acatar com a política segregadora dentro da grande tela. Ademais, inundava espectadores de uma falsa imagem de uma sociedade quase utópica. Era mais que o “American Way of Life”, significava a subjugação da própria cultura em detrimento da meritocracia de James Stewart e o estoicismo de John Wayne.

 

Atacou, também, a estética e a moda. As características da mulher brasileira são esnobadas pelo “branqueamento” nos filmes, criando ideias de beleza à imagem de mulheres como Marilyn Monroe. A “americanização” agravou-se ainda mais com a queda do governo democrático pelo golpe militar de 1964. O regime, inflexível e conhecido pela violência contra as liberdades individuais, foi responsável pela criação de órgãos estatais de censura, como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Por vezes, até impedindo a entrada de filmes estrangeiros que os censores não considerassem apropriados.

 

Laranja mecânica (Kubrick), que questionava o sistema punitivo, e Último Tango em Paris  (Bertolucci), com contexto sexual, foram impedidos de passar nos cinemas do país. Filmes brasileiros não eram imunes ao tratamento rígido do governo. “Pra Frente, Brasil”, obra de Roberto Farias sobre a ditadura militar, também foi alvo de censura. Sob essa ótica, de tortura e atos inconstitucionais, o cinema brasileiro reemergiu em uma encarnação mais socialmente ativa. Exclusivo do Brasil, o chamado Cinema Novo se desenvolveu ao longo da Ditadura, em contraponto aos materiais ufanistas que a junta militar buscava circular. Ainda eram produções precárias, sem investimentos, mas que buscavam, pelos princípios mais simples do audiovisual, comentar a sociedade e combater a dependência dos filmes estrangeiros.

 

Também era a época das pornochanchadas. Os “soft porn”, por vezes adaptações de Nelson Rodrigues por Neville de Almeida, foram fundamentais para o abrandamento da censura. O desempenho popular desses filmes, com plots vagos como intervalo para a próxima cena de nudez, forçaram os limites da tolerância dos militares, que buscavam não interferir. Com o fim dos anos de chumbo e posse de um presidente civil, o Brasil também daria origem a uma nova vertente da arte, o Cinema de Retomada.

 

Do final da década de noventa ao início dos anos dois mil, esse conjunto de filmes revigorou a dramaturgia nacional. Também conhecido como Cinema Marginal, eram obras de caráter social que exploravam distintas realidades do Brasil, fora do glamour das telenovelas. Central do Brasil, de Walter Salles, é um dos exemplos. Elogiado não só no Brasil, como no exterior.

 

Então, mesmo com a importância sócio-política do cinema nacional, por que o estigma persevera? Em uma pesquisa realizada pelo Datafolha e o Itaú Cultura, foi constatado que até um terço da população sente aversão ou resistência a filmes nacionais. São raros os participantes que afirmam ver com frequência produções brasileiras, apenas 24%. Dados os quais reverberam no desempenho de bilheteria, muito menor do que os estrangeiros. Porém, não se cabe pensar no audiovisual brasileiro como um mercado economicamente morto, pelo contrário.

 

A indústria cultural brasileira é uma potência em hibernação, sendo as políticas internas para a produção de filmes responsável pela própria crise. Em um estudo, a Spcine — Empresa estatal de cinema do Estado de São Paulo — constatou que 1 real investido na produção cinematográfica do estado significa um retorno de 20 reais na economia local. É o quinto setor mais relevante da economia nacional, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  (IBGE).

 

Quanto à receita, o Brasil movimenta mais de 25 bilhões de reais ao ano, seja com produção ou bilheteria. É o equivalente a 0,46% de todo o PIB nacional. À parte do público e dos investidores, a indústria emprega funcionários e viabiliza os cinemas, independentes ou de grandes companhias, que também integram a vida econômica de muitas pessoas.

 

Pegue-se o caso de “Cemitério das Almas Perdidas”. O filme de terror de Rodrigo Aragão é o mais recente gravado em Guarapari, cidade natal do diretor. Foram mais de 200 vagas de empregos geradas pela produção, um investimento direto na economia local. Rodrigo, que já afirmou o cinema nacional como “um bom negócio”, é um de seus grandes defensores. Não se trata apenas de figuração ou pré-produção, ao transformar o litoral do Espírito Santo em sua Hollywood, Rodrigo beneficiou o comércio, hotelaria e demais setores econômicos da cidade. São essas as pessoas beneficiadas indiretamente pela produção cinematográfica.

 

Não que o intuito financeiro deva ser o único referente ao cinema. Mesmo na era da reprodutibilidade técnica, é uma forma de expressão e arte. Nesse contexto, encontramos os cineastas independentes. Artistas que disputam editais para financiar seus filmes, mas que, na maior parte das vezes, dependem de produtores para conseguir investimento. Nas raras ocasiões em que é possível bancar totalmente os custos de produção, um cineasta pode lançar filmes em diversas salas no país. Porém, como observado, o retorno de bilheteria não é o adequado, em vista da preferência do grande público por produções hollywoodianas.

 

Segundo a doutora em Ciências da Comunicação,  Alessandra Meleiro, no livro “Indústria Cinematográfica e Audiovisual Brasileira Vol. 2” a maior participação popular no cinema vem através dos “blockbusters”. Tubarão, de Steven Spielberg, é conhecido como o primeiro filme da categoria: produções B que fomentam maior apelo popular, por vezes apelando para efeitos visuais. Essas obras investem em campanhas de marketing que conquistam o público antes mesmo de entrar em cartaz. Ambos os aspectos são ignorados pelo Estado, o que leva ao êxodo de profissionais para o exterior e filmes obscurecidos.

 

Com a crise atual no setor cultural, tanto a Ancine quanto a Condecine, ambos órgãos importantes para investimento no cinema, estão ameaçadas de extinção. Editais se tornam mais raros e cada vez menos produções deixam o papel. Isso é ainda mais grave no que diz respeito a filmes de gênero. O diretor, produtor e roteirista independente Joel Caetano é um contribuidor do acervo nacional do cinema fantástico. Seu primeiro filme, “Minha noiva é um zumbi” foi extremamente bem recebido pelo público no Cinefantasy de São Paulo.

 

“Eu não achava que meus projetos caberiam em um edital. Como eu explicaria o filme de um gato falante que faz um cara matar a esposa e colocar a cabeça dela na geladeira”. Produzir um filme significava trabalhar dentro das próprias limitações. Abraçando o Trash, Joel conquistou seu público, já amante do terror-comédia e do “camp”. A estreia não foi o único sucesso em festivais, nos anos seguintes seus curtas — como “Gato” (2009) — tiveram ótimo desempenho não só nacional como internacional. Descobriu assim a importância dos festivais: uma chance de construir um portfólio visível para futuros colaboradores e investidores.

 

Mesmo com as dificuldades dentro do próprio país, a identidade brasileira vem se destacando dentro do cinema mundial.   Aquarius, de 2016, estrelado por Sônia Braga, foi um dos principais concorrentes à Palma de Ouro do Festival de Cannes. Até hoje, foi o único longa-metragem latino-americano já indicado à categoria de melhor filme. Foi vitorioso nos festivais de Sidney, Lima e Amsterdã.

 

É um equívoco pensar que filmes são só relevantes para o país de produção. Realidades se repetem independente do local. Bong Joon-ho, primeiro diretor a ganhar o Oscar de Melhor Filme por uma obra não em inglês, se disse incrédulo quanto ao sucesso de seu trabalho, “Parasita” (2019). Acreditava que os temas gerais eram muito únicos da Coreia do Sul. Porém, a força que o filme conquistou crítica e popularmente é evidência que obras de diferentes pontos do mundo podem concorrer diretamente com Hollywood, e vencer.

 

Um importante salto para os cineastas é a transição da paixão para o trabalho. Assim como qualquer jovem que conta aos pais o desejo de seguir carreira no cinema brasileiro, Joel experimentou da incredulidade e do estigma. Filmes nacionais não tinham espaço, fosse na grande ou pequena tela. “Fomos bombardeados de produções norte-americanas. Isso não é algo ruim, mas era um monopólio (de Hollywood), não tinha filme nacional passando na T.V.”.

 

Além de hoje trabalhar com cinema, Joel, já há 10 anos, oferece oficinas na área. São de cinco a dez oficinas ao ano. Com a integração de novas tecnologias, o que antes só poderia ser alcançado com uma câmera profissional, está à distância de um clique no celular. 2023 marcará a estreia de seu novo filme, uma animação Stop-Motion, inédito ao diretor. Gradualmente, cineastas como Rodrigo Aragão e Joel Caetano tornam o cinema de gênero cada vez mais presente na cinematografia nacional.

 

Maior do que o prestígio dos últimos anos. Joel tem como maior tesouro seu encontro com Mojica. A amizade em um festival o levou ao cargo de assistente de diretor no último filme do lendário cineasta. “As Fábulas Negras”, lançado em 2015, é um compilado de antologias de terror. Porém, ainda mais, é uma viagem no tempo. A chance de gerações do cinema fantástico brasileiro se encontrarem sob uma mesma obra. Aficionados, Rodrigo Aragão e Joel Caetano dirigem dois dos segmentos do longa. Enquanto Mojica toma as rédeas na primeira história.   

 

Era a última vez como diretor e ator. Joel vira colegas de elenco se emocionarem com os sermões de Mojica, na pele de um pastor, ou se assustarem quando o diretor gritava o início das filmagens. “Ele era realmente um maestro, a forma com que ele falava ‘ação’, já dava todo o ritmo para o ator”. Na realidade, José Mojica Marins não era um coveiro dedicado ao nascimento do anticristo, embora muitos esqueçam. O diretor era um artista dedicado que seguia a paixão pelo cinema mesmo quando brasileiros se mantiveram alienados por Hollywood.

 

Cinco anos após o último filme, Mojica faleceu aos 83 anos. E, embora eternamente ferido, o cinema nacional não parte com ele. Até o dia em que receba os merecedores recursos, cairá sobre os ombros da atual geração de cineastas zelar pelo legado dos antigos artistas.

 

 Corta.

 

Texto: Daniel S. Simon

Edição: Maria Isabela Andrade

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