Histórias além dos números: relatos e memórias de pessoas que perderam familiares para o Covid-19

A pandemia que teve início no final de 2019 ocasionou a morte de quase 15 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, a última atualização realizada dia 24 de janeiro de 2023, pelo Repositório de Dados de Covid-19 do Centro de Ciência e Engenharia de Sistemas (CSSE) da Universidade Johns Hopkins, mostra que 696 mil pessoas morreram de Covid no país. Cada uma delas tinha uma família, um amigo, um filho. Eram importantes para alguém e tornaram-se parte do número de vítimas do coronavírus.

 

Segundo um estudo realizado pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), a Covid-19 deixou 12.211 mil órfãos de até 6 anos no país. E ainda segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), pelo menos 130 mil crianças e adolescentes perderam pai e mãe na pandemia. Outra pesquisa realizada entre março de 2020 e abril de 2021, publicada pela revista The Lancet mostra que em 21 países, mais de 1,1 milhão de crianças e adolescentes perderam um dos pais ou dos cuidadores primários em decorrência da doença. Até o momento esses números representam apenas pessoas com menos de 17 anos de idade.

 

Isabela Maximowski, de 26 anos, faz parte do número daqueles que perderam familiares para a Covid-19. O pai, Albari Maximowski, de 54 anos, morador da cidade de Guarapuava-PR, foi acometido pelo vírus no ano de 2021. Maximowski era vendedor em uma loja de móveis e fazia parte do grupo de risco. Por esse motivo, com o início dos casos de coronavírus, afastou-se por 51 dias do trabalho. A filha relata que, durante a pandemia, o pai sofria muito com a distância que tinha que manter dos familiares, pois a família tinha como costume reunir-se nos finais de semana.

 

Na primeira semana em que Maximowski retornou ao emprego, teve contato com um colega que estava com Covid-19. Nesse período, a esposa e a filha também contraíram o vírus e os três ficaram isolados em casa. Ele começou a mostrar sintomas, dor de cabeça, febre, dor no corpo e falta de ar. O estado de saúde começou a agravar-se e com isso foi levado ao hospital, no período em que ele contraiu o vírus, o país como um todo estava registrando milhares de casos todos os dias e a falta de leitos nos hospitais era frequente. Por não encontrar de imediato uma vaga no hospital, o caso de Maximowski agravou-se. “Depois do momento que ele entrou no hospital, eu e minha mãe não o vimos mais. Um dos enfermeiros avisou a gente de que talvez mandassem informações sobre o estado dele, e que o médico normalmente informava as famílias, mas que isso não acontecia todos os dias”, relata a filha.

 

Após sete dias entubado no hospital, Maximowski começou a ter perda do funcionamento do rim, e no décimo terceiro dia de internamento, veio a óbito. A filha conta sobre o medo que o pai tinha de hospitais e principalmente de contrair Covid-19. “Nosso medo era do meu pai acordar entubado, sozinho e dentro do hospital, ele tinha muito medo de pegar covid”. Devido às restrições sanitárias, a família não pode ver o ente durante o velório, para a filha o fato de não poder ver e ter contato físico com o pai faz com que ela e a mãe tenham a sensação de que a qualquer momento elerá entrar em casa depois de um dia de trabalho. Isabela ainda comenta que o pai cuidava das finanças da casa e a perda dele fez com a mãe trabalhasse mais e que ela adquirisse um emprego. Albari Maximowski faleceu em maio de 2021 e no dia em que contraiu a doença, ele receberia a primeira dose da vacina contra o Coronavírus.

 

 

Quantas mortes seriam evitáveis?

Uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), juntamente com a Secretaria Municipal de Saúde de Londrina, e a Faculdade de Medicina Albert Einstein dos Estados Unidos, mostrou que 75% das mortes por Covid-19 registradas nos dez primeiros meses de 2021 poderiam ter sido evitadas se as pessoas tivessem acesso a vacina. O relatório também mostra que idosos não vacinados morreram quase três vezes mais do que os imunizados.

 

Mais das 500 mil mortes registradas poderiam ser evitáveis caso o governo federal tivesse adotado medidas de precaução, cuidado e tratamento devido ao coronavírus. Além de negacionistas e pessoas que realizavam aglomerações, mesmo sabendo que o país registrava todos os dias milhares de mortes. Do outro lado, pessoas que pegavam ônibus e metrôs lotados todos os dias para garantir o emprego e sustento da família, arriscando-se e desejando não terem que sair na rua em meio a pandemia.

 

Joacir Fabris, 46 anos, morador de Coronel Vivida, PR, foi uma das pessoas que trabalhavam diariamente durante a pandemia. Ele atuava na área de panificação no mercado da cidade e afastou-se do trabalho somente quando o número de casos de Covid-19 começou a aumentar demasiadamente na cidade em que morava.

 

Fabris havia realizado uma cirurgia de transplante de pulmão no início do ano 2000, e por isso fazia parte do grupo de risco. Ele era uma das milhares de pessoas que também tinham medo de contrair a doença, por isso tomava todos os tipos de remédios que recomendavam. “Ele teve contato com uma pessoa que estava positivada e nesse momento fez mais de cinco testes para saber se tinha Covid, o médico começou a tratar ele como paciente com Covid Psicológica, pois até o momento ele não estava contaminado, mas tinha todos os sintomas”, comenta Jocácia, filha de Fabris.

 

A Covid Psicológica, também conhecida entre médicos como somatização, se dá quando o quadro clínico não é causado pelo vírus, mas por um estado de ansiedade e preocupação. É quando o medo de se contaminar é tão grande que a pessoa passa a ter todos os sintomas da Covid-19, como febre, tosse seca, mal-estar e dificuldade para respirar.

 

Esse foi o caso de Joacir Fabris, os sintomas iniciais dele eram, febre, tosse, mal-estar, dores no corpo e após alguns dias, o medo de contrair Covid-19 foi tanto que passou mal, tendo falta de ar e precisou ir para o hospital. No período, os casos da doença na cidade ainda eram baixos em comparação aos anos seguintes. Assim, Joacir teve que ser encaminhado para a cidade vizinha onde havia equipamentos e cuidados avançados para pacientes com coronavírus. Ficou hospitalizado por dois dias, e foi nesse momento que acabou contraindo o vírus. O que até o momento era psicológico passou a ser real e agravou-se rapidamente devido ao histórico de saúde que possuía.

 

A família de Fabris só recebia informações pelos médicos e enfermeiros, Jocacia relata que eram raros os dias que informavam e que todas as ligações faziam com que ela e a família ficassem com medo de atender o celular. “Alguns dias antes dele falecer ele teve uma melhora e foi quando todos nós conseguimos entrar no quarto para uma visita, mesmo sedado a gente conversava com ele”, relata a filha.

 

Dias depois, Joacir veio a óbito. A família não teve contato com o corpo do familiar. Ele foi uma das primeiras pessoas na cidade que faleceu devido a Covid-19. Como as medidas de restrições ainda eram rígidas por não se compreender muito sobre o vírus na época, a família não pode nem chegar perto do caixão. Mesmo lacrado, todos tiveram que manter distância e não podiam ultrapassar a faixa de segurança que havia no local. “A gente não pôde nem chegar perto do caixão, a única pessoa que viu ele antes do velório foi meu irmão quando foi fazer o reconhecimento do corpo no hospital”, contou Jocácia.

 

 

Redes de apoio: luto em tempos de Covid-19

O não contato com o familiar faz com que o luto seja um momento mais longo que o normal, afinal, além da perda de alguém a pessoa também passa pela falta de uma despedida. Nesse momento, ter amigos, familiares ou grupos de apoio é essencial. “Nosso grupo de apoio foi a igreja e amigos e mesmo após três anos essas pessoas ainda auxiliam muito minha família”, relata Jocácia.

 

Para auxiliar as pessoas que perderam familiares durante a pandemia, um grupo de profissionais criou a Rede de Apoio às Famílias e Amigos de Vítimas Fatais de Covid-19 no Brasil. A rede de apoio conta com cidadãos, profissionais de diversas áreas, organizações sociais, pesquisadores e demais pessoas solidárias às famílias e amigos das vítimas do Coronavírus. O objetivo desta rede é oferecer amparo às famílias em várias áreas, desde contribuir para o resgate e preservação da memória dos mortos em um espaço público até o oferecimento de um conjunto de medidas concretas imediatas para amenizar o sofrimento. Além de oferecer orientação, contatos e conhecimentos de outras experiências, garantindo apoio, sobretudo profissional e humano.

 

A rede contém diversos voluntários e profissionais dispostos a atender de forma online e presencial. São iniciativas como essas que auxiliam e fazem com que os enlutados tenham mais esperança após verem tantas mortes durante a pandemia, afinal não são só pessoas que perderam familiares que foram afetadas pela pandemia de Covid-19.

 

A esposa de Joacir Fabris, Carla Teles, perdeu 15% da visão devido ao trauma da perda do marido, e em momentos de estresse a visão acaba piorando. “Nós evitávamos falar sobre meu pai, na hora do almoço quando nos reuníamos, ninguém conversava, era uma casa silenciosa. Não queríamos falar sobre para não deixar minha mãe pior, foi nos grupos de apoio que eu podia conversar, me abria, desabafava meus sentimentos e todas as angústias que eu estava passando”. Relatou Jocácia

 

 

Texto: Emely Cardoso

Edição: Maria Isabela Andrade

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